Antes de tudo, para que não pairem dúvidas sobre a conduta ilibada e as
virtudes teologais do padre Hamílcar Montserrat, quero registrar que ele possui
pleno gozo de suas faculdades mentais e sempre foi considerado um exegeta de
primeira grandeza intelectual, com formação acadêmica no Pontifício Instituto
Bíblico em Roma, onde obteve summa cum laude. Inclusive, seu nome
figura na lista tríplice de candidatos, dentre os quais o Papa
escolherá um, para receber a ordenação episcopal, plenitude do sacerdócio.
Posto isto, segue a narração dos fatos:
Tudo transcorria dentro da normalidade na celebração da missa das 7h do
16º Domingo do Tempo Comum presidida pelo padre Hamílcar Montserrat,
na Paróquia Santa Emerenciana, porém, depois de realizar a transubstanciação da
hóstia e do vinho, ele fez a genuflexão e, ao ficar de pé, permaneceu inerte,
com o olhar fixo para assembleia de fiéis, por um espaço de tempo, sem nada
falar. Em seguida, fechou o Missal Romano, que estava assentado no suporte de
apoio sobre o altar e começou a bramir:
- Deus está morto! Deus está morto! Deus está morto! – Ululante,
proferiu as palavras o sacerdote, enquanto se despia dos seus paramentos
litúrgicos.
Para os paroquianos presentes, mesmo atônitos, diante da cena inusitada
e teratológica, sem precedentes no universo eclesiástico, não passou
despercebido que a fisionomia do padre Hamílcar Montserrat estava
transfigurada, assim como sua voz também era irreconhecível. Pelo viés da
compreensão da fé, ficou subentendido através dos atos, falas e ações que todos
estavam testemunhando uma revelação divina.
- Sou o único sobrevivente do Céu. Eu consegui escapar antes do
cataclismo que devastou por completo os que habitavam o Céu. Não existem mais
santos e anjos no Céu. Não existe mais Deus. Deus está morto. Ele foi morto
pelo próprio Filho... Jesus Cristo matou o Pai. E, depois de ceifar a vida de
Deus, Jesus Cristo cometeu suicídio. O pecado da ganância desenfreada pelo
poder que assola a Terra corrói e destrói a humanidade dia e noite transcendeu
a Terra e chegou ao Céu, aniquilando Pai e Filho. Cumpriu-se a profecia: “Assim
na Terra como no Céu!”. Foi incisiva, no relato, a voz que falava pela
boca do padre Hamílcar Montserrat.
Após ficar livre da, assim designada, incorporação espiritual, padre
Hamílcar Montserrat, aviltado ao ver seus paramentos esparramados no chão
em torno do altar-mor, não soube explicar aos féis o que se desencadeou depois
da transubstanciação e de ter feito a genuflexão. Com essa negação da
lembrança do dileto padre, toda a assembleia presente entrou em profundo estado
de apavoramento. Gritos, súplicas, choros e ranger de dentes extrapolaram para
além da Paróquia Santa Emerenciana.
Atônito, depois de ouvir em minúcias tudo o que foi dito pela
sua boca enquanto estava em transe ritualista, o sacerdote revestiu seus
paramentos litúrgicos e foi ao púlpito, onde exigiu postura religiosa e
serenidade dos féis por se encontrarem dentro da Igreja.
- Meus irmãos, minhas irmãs, vamos manter a calma para concatenarmos as
ideias. Assim nos ensina a Palavra de Deus: “Os lábios do sacerdote devem
guardar os mandamentos de Deus e de sua boca se espera o ensinamento seguro”,
está em Malaquias 2,7. Pois bem, diante de tudo que foi testemunhado aqui,
creio piamente que eu fui escolhido para ser camerlengo do Céu, já que o Céu se
tornou uma Sé Vacante, com a morte de Deus e o suicídio de Jesus Cristo, seu
único Filho que detinha o direito sucessório legitimado. Embasado nesta
realidade da morte de Deus e de Jesus Cristo, fica explicitado o porquê de
tanta maldade, tanto desmando religioso, social e político, tanta injustiça,
tanta fome na Terra, tanta corrupção, tanto impostor religioso, tanta troca de
valores éticos e morais, tanta lascívia, tanta intolerância religiosa,
tanta prevaricação que nos permeiam neste mundo.
"Se Deus não existe, tudo é permitido". Esta é uma afirmação
niilista atribuída ao escritor russo Fiódor Dostoiévski. O ser
humano pérfido, com a morte de Deus, autoproclamou-se Todo-poderoso, acima
do bem e do mal. Desse modo, pratica todos os tipos de atrocidades, uma vez que
Deus está morto e, portanto, não haverá uma punição do cânone espiritual. E, no
que tange a regra da justiça dos homens, essa está sob o jugo do próprio homem.
Porém, está escrito em Isaías 5,20: “Ai daquele que chama de bem o
mal ou de mal o bem”. Ledo engano, quem pensar que como camerlengo do Céu, eu
vou ser conivente com quem é espúrio e usa o santo nome de Deus em vão. Porque
está escrito em Números 14,18: “Deus não trata o culpado como se fosse
inocente”.
Há quem diga que esse episódio nunca existiu. E tudo narrado aqui
não passa de uma heresia desmedida. Mas uma coisa é incontestável: a humanidade
perdeu o temor a Deus. A salvação espiritual se transformou em algo souvenir.
A fé deixou de ser um importante fundamento da vida, agora viver é tão somente
buscar prosperidade financeira.
A tese do livre arbítrio, para mim, não passa de privação de
conhecimento teologal. E, ainda que Deus não esteja morto, Ele se exilou em um
lugar incerto e não sabido por vergonha de ter criado uma humanidade podre.
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¹ Antônio Menrod é psicanalista e
dramaturgo. (Nota do escritor)
Você pode conhecer mais sobre o autor
nos dois links que estão logo abaixo:
https://literaturasergipana.blogspot.com/2015/01/antonio-menrod-um-autor-do-nosso-tempo.html
https://literaturasergipana.blogspot.com/2016/10/fatos-do-cotidiano-na-literatura-crista.html
E também assistir a um vídeo sobre a biografia dele:
Para entrar em contato com o autor, acesse
o blog do mesmo: http://oratorioantoniomenrod.blogspot.com/