(Foto: acervo pessoal do autor)
Eu o amava. Nossa como eu
o amava. Acima de tudo, eu o amava, doutor delegado! Ele era meu vÃcio, era
minha obsessão. Nunca do nunca, nem no meu mais longÃnquo pensamento, consegui
enxergar minha vida sem o Otto. Confiava nele cegamente! Coloquei nas mãos dele
meus desejos, meus medos, meus sonhos e os meus mais sinceros sentimentos. E
fui mais longe: coloquei nas mãos dele a minha vida. Nunca escondi dele a minha
verdade, a minha verdade nua e crua. Ele era o meu dono. Mesmo sendo eu uma
mulher de muitos homens, mas somente ele era meu dono. Somente com ele eu tinha
prazer sexual. Com os outros homens eu fingia, o que de fato me interessava em
outros homens era o dinheiro que eu recebia depois do sexo. Como o doutor
delegado já deve saber, sou garota de programa num lupanar de Copacabana. Desde
muito cedo estou nesta vida. Sou uma prostituta. Eu faço na cama o que os
homens querem e os homens me dão em troca o dinheiro do preço combinado. A
minha história de amor com o Otto começou a desandar depois que eu tive como
cliente um homem letrado, desses que escreve livros e tudo. Ele era poeta. Ele
procurava os meus préstimos de prostituta toda sexta-feira. Sempre, depois de
atingir o clÃmax, ele dizia esta frase para mim: "Última flor do Lácio,
inculta e bela". No inÃcio eu não sabia o que significavam as palavras:
Lácio e inculta. Mas, como a frase tinha também as palavras flor e bela, eu
acreditei que, por ele ser poeta, este era o jeito poético dele dizer que eu
era uma flor bela. O poeta, meu cliente, também declamava poesias pra mim, ora
poemas de Olavo Bilac (ouvindo ele declamar um soneto do poeta parnasiano foi
que eu fiquei sabendo a origem da frase: "Última flor do Lácio, inculta e
bela"), ora de Cora Coralina. Às vezes, ele me contratava, me levava pro
quarto e nem tÃnhamos intimidade de homem e mulher... o doutor delegado sabe o
que estou querendo dizer, não sabe? Pois é, às vezes o poeta somente ficava
declamando poesias para eu ouvir. Certa feita, ele declamou um poema de Cora
Coralina que me tocou profundamente. Doutor delegado, o senhor sabia que a
poetisa goiana escreveu um lindo poema no qual ela chama todas as prostitutas
de irmãs? Mais ou menos o poema é assim: "Mulher da zona, Mulher da rua,
Mulher perdida, Mulher à -toa. Mulher da Vida, minha irmã". Eu fiquei tão
emocionada, tão emocionada quando ouvi este poema que não sei expressar o
tamanho da minha felicidade em saber que uma mulher das letras considerava as
prostitutas suas irmãs. Depois que conheci este meu cliente poeta, tomei gosto
por leitura e ganhei dele vários livros, dentre os quais um de Olavo Bilac e
outro de Cora Coralina. Mas, infelizmente, a vida de uma prostituta não tem a
mesma beleza dos poemas. Veja onde estou? Em uma delegacia, prestando
depoimento por ter atentado contra a vida do homem que significava tudo para
mim. Doutor delegado, acredite em mim, houve circunstâncias atenuantes para o
que fiz com Otto, foi por legÃtima defesa. O Otto ficou ensandecido depois que
o poeta se tornou meu cliente. Ele nunca havia tido ciúmes de nenhum dos meus
clientes, mas passou a ter um ciúme doentio do poeta. Não pense, doutor
delegado, que Otto tinha ciúme porque o poeta fazia sexo comigo. Eu podia fazer
sexo com mil homens por dia, Otto nem estava aÃ, para ele o importante era a
soma de dinheiro que eu levava para casa. O ciúme dele em relação ao poeta era
porque o poeta me ensinou a escrever e a ler. E sendo uma mulher instruÃda, por
menor que fosse minha instrução, percebi que estava vivendo sob o jugo de um
desprezÃvel bonvivant. Em uma ocasião eu disse ao Otto: - Você me tem fácil
demais, por isso você não me dá o devido valor. Não abuse do incomensurável
amor que tenho por ti, Otto. E ele abusou em demasia! Não levou a sério o que
tinha lhe falado e deu no que deu. Hoje estou aqui, na delegacia, e Otto no
hospital entre a vida e a morte. Doutor delegado, se o senhor me permitir,
quero acrescentar mais uma constatação no meu depoimento. No último encontro
que tive com o poeta, ele, sabedor do dilema que carcomia minha vida, disse-me
que o filósofo grego Aristóteles escreveu: "Todos os homens, por natureza,
desejam saber". Então eu pergunto ao senhor, é crime uma prostituta querer
aprender a escrever e a ler?
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Antônio Menrod, pós-doutorado em
Educação, Arte e História da Cultura. É autor de 18 livros publicados.
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