Conto A DEPOENTE de Antonio Menrod

(Foto: acervo pessoal do autor)

 

Eu o amava. Nossa como eu o amava. Acima de tudo, eu o amava, doutor delegado! Ele era meu vício, era minha obsessão. Nunca do nunca, nem no meu mais longínquo pensamento, consegui enxergar minha vida sem o Otto. Confiava nele cegamente! Coloquei nas mãos dele meus desejos, meus medos, meus sonhos e os meus mais sinceros sentimentos. E fui mais longe: coloquei nas mãos dele a minha vida. Nunca escondi dele a minha verdade, a minha verdade nua e crua. Ele era o meu dono. Mesmo sendo eu uma mulher de muitos homens, mas somente ele era meu dono. Somente com ele eu tinha prazer sexual. Com os outros homens eu fingia, o que de fato me interessava em outros homens era o dinheiro que eu recebia depois do sexo. Como o doutor delegado já deve saber, sou garota de programa num lupanar de Copacabana. Desde muito cedo estou nesta vida. Sou uma prostituta. Eu faço na cama o que os homens querem e os homens me dão em troca o dinheiro do preço combinado. A minha história de amor com o Otto começou a desandar depois que eu tive como cliente um homem letrado, desses que escreve livros e tudo. Ele era poeta. Ele procurava os meus préstimos de prostituta toda sexta-feira. Sempre, depois de atingir o clímax, ele dizia esta frase para mim: "Última flor do Lácio, inculta e bela". No início eu não sabia o que significavam as palavras: Lácio e inculta. Mas, como a frase tinha também as palavras flor e bela, eu acreditei que, por ele ser poeta, este era o jeito poético dele dizer que eu era uma flor bela. O poeta, meu cliente, também declamava poesias pra mim, ora poemas de Olavo Bilac (ouvindo ele declamar um soneto do poeta parnasiano foi que eu fiquei sabendo a origem da frase: "Última flor do Lácio, inculta e bela"), ora de Cora Coralina. Às vezes, ele me contratava, me levava pro quarto e nem tínhamos intimidade de homem e mulher... o doutor delegado sabe o que estou querendo dizer, não sabe? Pois é, às vezes o poeta somente ficava declamando poesias para eu ouvir. Certa feita, ele declamou um poema de Cora Coralina que me tocou profundamente. Doutor delegado, o senhor sabia que a poetisa goiana escreveu um lindo poema no qual ela chama todas as prostitutas de irmãs? Mais ou menos o poema é assim: "Mulher da zona, Mulher da rua, Mulher perdida, Mulher à-toa. Mulher da Vida, minha irmã". Eu fiquei tão emocionada, tão emocionada quando ouvi este poema que não sei expressar o tamanho da minha felicidade em saber que uma mulher das letras considerava as prostitutas suas irmãs. Depois que conheci este meu cliente poeta, tomei gosto por leitura e ganhei dele vários livros, dentre os quais um de Olavo Bilac e outro de Cora Coralina. Mas, infelizmente, a vida de uma prostituta não tem a mesma beleza dos poemas. Veja onde estou? Em uma delegacia, prestando depoimento por ter atentado contra a vida do homem que significava tudo para mim. Doutor delegado, acredite em mim, houve circunstâncias atenuantes para o que fiz com Otto, foi por legítima defesa. O Otto ficou ensandecido depois que o poeta se tornou meu cliente. Ele nunca havia tido ciúmes de nenhum dos meus clientes, mas passou a ter um ciúme doentio do poeta. Não pense, doutor delegado, que Otto tinha ciúme porque o poeta fazia sexo comigo. Eu podia fazer sexo com mil homens por dia, Otto nem estava aí, para ele o importante era a soma de dinheiro que eu levava para casa. O ciúme dele em relação ao poeta era porque o poeta me ensinou a escrever e a ler. E sendo uma mulher instruída, por menor que fosse minha instrução, percebi que estava vivendo sob o jugo de um desprezível bonvivant. Em uma ocasião eu disse ao Otto: - Você me tem fácil demais, por isso você não me dá o devido valor. Não abuse do incomensurável amor que tenho por ti, Otto. E ele abusou em demasia! Não levou a sério o que tinha lhe falado e deu no que deu. Hoje estou aqui, na delegacia, e Otto no hospital entre a vida e a morte. Doutor delegado, se o senhor me permitir, quero acrescentar mais uma constatação no meu depoimento. No último encontro que tive com o poeta, ele, sabedor do dilema que carcomia minha vida, disse-me que o filósofo grego Aristóteles escreveu: "Todos os homens, por natureza, desejam saber". Então eu pergunto ao senhor, é crime uma prostituta querer aprender a escrever e a ler?

 

_____________________________

Antônio Menrod, pós-doutorado em Educação, Arte e História da Cultura. É autor de 18 livros publicados.

 

Conheça mais sobre o autor no link abaixo: 

https://bit.ly/3DLzW3U


Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem

Formulário de contato